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O Mal de Rafael. Ele continua por aí.

Todo mundo toma Coca-Cola Zero!


Certas definições de público‐alvo em comunicação são arbitrárias e fruto de convicções e preferências puramente pessoais.


Há algum tempo, contei a um conhecido meu, o Rafael, qual era a participação de mercado aproximada da Coca-Cola Zero, entre o conjunto dos refrigerantes. E ele me disse: "Jaime, isso não é  possível, deve ser muito mais alta. Todo mundo que eu conheço toma Coca-Cola Zero!" Eu fui obrigado  a concordar: quase todo mundo que ele conhece toma Coca-Cola Zero. Dentro do grupo social onde ele transita, a sua afirmação não deixa de ser a pura expressão da verdade, uma constatação indiscutível. Boa, Rafael.


Os problemas começam quando os profissionais de comunicação e de marketing trazem ingênua e inadvertidamente essas verdades pessoais para o escritório. Enquanto o Rafael continuar o trabalho que faz hoje e não fizer nenhuma incursão nesta nossa profissão, estaremos protegidos  contra suas crenças pessoais. Mesmo assim, o problema continua existindo: o nosso mercado  tem "rafaéis" em abundância. 


Mesmo quem não o é, vez por outra apresenta algum sintoma parecido. Confesso: eu mesmo  assumo já ter agido como Rafael em algumas acaloradas discussões.


Há sempre um supervisor de atendimento ou um gerente de marketing em algum trabalho de comunicação cujo público‐alvo acaba definido a partir de suas experiências e convicções pessoais.  Ou pior, a partir de visões pessoais sobre a experiência de vida de outros seres próximos: "Não  que eu considere meu filho uma amostra válida, mas..." E aí vem a pérola sobre o amplo  conhecimento que tem a respeito dos valores, da visão de mundo e do comportamento de  consumo da geração mais jovem. Outras vezes, os "rafaéis" partilham certas intimidades conjugais: "Minha esposa fica irritadíssima quando vê esses comerciais onde o produto...". Não é preciso nem muito esforço para imaginar o que vem depois disso: um rico painel de opiniões sobre como alguns tipos de mulher reagem a certos tratamentos publicitários. Uma grande  celebração da harmonia conjugal. Além dos filhos e das esposas, podem estar presentes também a mãe e os amigos íntimos do Rafael. E, no caso destes últimos, a ideia terá surgido sempre durante um churrasco, depois da quinta latinha de cerveja, ou no retorno de uma ponte‐aérea.


Ironias à parte, a arbitrariedade e a subjetividade continuam sendo uma fonte inesgotável de ideias para a definição de targets de comunicação. Essa visão etnocêntrica em marketing, isto é, de ver o mercado de consumidores a partir da própria ótica pessoal e tribal do executivo, é muito frequente. 


Ainda que muitas vezes ela venha travestida de intuição pessoal. No fundo, essa síndrome da  arbitrariedade e subjetividade na escolha e caracterização do público‐alvo tem duas origens:


1) Certa onipotência que é muito comum em algumas profissões. Trata‐se de um sentimento que nega um princípio essencial encontrado em qualquer cartilha de marketing: o único ser soberano em todo o processo chama‐se consumidor. Ou somos capazes de nos despojar humildemente de nossas impressões subjetivas, calçar seus sapatos e de entendê-lo objetivamente ou então estamos com um problema.


2) A outra fonte do mal é quase um espelho da primeira: ainda não são suficientes os investimentos em estudos de comportamento do consumidor. Com algumas exceções, não encontramos no mercado empresas que separem regularmente verbas razoáveis para  essa finalidade. Na maior parte dos casos, temos a incômoda sensação de um pediatra que recebe uma chamada às duas da manhã por que um garoto está com 39,5 graus de febre.



As febres, cataporas e rubéolas são meio inevitáveis. Porém, que tal uma visita mais periódica ao pediatra para evitar outros probleminhas e entender um pouco melhor como funciona a saúde de seu filho? Ou a saúde mental dos pais, porque o bom pediatra cuida mesmo é dos pais, sem atrapalhar a vida dos filhos. A comparação pode não ser perfeita, mas a falta de estudos  "profiláticos" e regulares sobre comportamento de consumidor abre um enorme espaço para as divagações e o uso indevido da pura subjetividade pessoal. 

As consequências desse problema, por sua vez, são muito perigosas. 

Lembro-me de duas:


1. O risco da caricatura 

A falta de recursos objetivos para entender quem são e como vivem as pessoas com quem queremos falar tende a criar mock‐ups. Protótipos de gente, sobre os quais é muito difícil para criativos e mídias construírem algo que seja efetivamente pertinente e eficaz. Aliás, muitas vezes eles assim mesmo conseguem fazê‐lo. Mas é pura loteria. Vejam, por exemplo, a quantidade de comerciais e anúncios que refletem uma visão caricatural e fragmentada da consumidora. Ela é retratada apenas no exercício de um de seus papéis essenciais: a mulher bonita e sensual que  seduz; a mãe exemplar e dona‐de‐casa; a profissional e executiva de sucesso. Neste caso, o  mock‐up vem do fato de que as consumidoras reais não conseguem mais ver a independência e o isolamento desses papéis. Sua aspiração dominante é como equacionar e administrar essas  várias esferas da vida. São equilibristas segundo a Cecília Russo Troiano, e não pêssego em calda,  que vem em pedaços.


2. O risco da dispersão 

 Este segundo é ainda pior. Porque é como ver o dinheiro indo embora pelo ralo! A definição pobre,  subjetiva e imprecisa do público‐alvo é acima de tudo um grande desperdício. Não há mídia segmentada, dirigida, digital, ou seja, lá qual for capaz de resolver o "mal de Rafael". A dispersão,  neste caso, será fruto da definição pobre e subjetiva da audiência e não uma limitação da mídia.


A cura da onipotência e da falta de humildade ainda não foi descoberta. Porém, investir em leituras regulares do comportamento do consumidor, ouvi-lo com desprendimento, sem ser defensivo é um remédio excelente contra esse "mal".


É muito provável que a tecnologia de comunicação tenha evoluído muito mais rapidamente do que nossa capacidade técnica para utilizá-la bem. Portanto, uma das tarefas cruciais que temos pela  frente é identificar com muito mais precisão o contorno dos targets com quem queremos falar.  Sem isso, o maravilhoso instrumental de comunicação à nossa disposição será apenas um luxo ou uma possibilidade estéril. E o mal de Rafael continuará fazendo escola.


Este texto é também uma homenagem ao meu amigo e cliente Romeo Busarello, um brilhante  executivo e professor, que tem lutado bravamente para extirpar esse mal em nosso mercado.

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