Demorou, mas começou! Voltei às salas de cinema. O sofá de casa estava com marcas profundas dos quase dois anos em que ele me acolheu, sem descanso e sem reclamar. Obrigado!
Muitas coisas nos salvaram durante este período. Da vacina, em primeiro lugar, ao delivery. Do aplicativo da Rita Lobo às esteiras e transports na academia do meu prédio. Do álcool gel à fúria incansável e repetitiva dos grupos de whatsapp. E nossa própria casa, de que, aliás, quase havíamos nos esquecido. Todos os seus cantinhos, prateleiras, armários que voltamos a abrir, vasos com plantas abandonadas, as camisetas que estavam de baixo da pilha de roupas. Depois de anos e anos simplesmente entrando em casa, tomando banho, dormindo e saindo outra vez... Uma amiga arquiteta, a Aiê, me disse: muitos clientes acabaram finalmente descobrindo, durante a pandemia, a casa em que moravam.
Mas, depois desse longo túnel de que estamos prestes a sair, creio eu, o mundo lá fora nos espera com os encantos, surpresas e oportunidades. Eu confesso que estava prestes a me acostumar resignadamente a alguns dos rituais pandêmicos e sanitários. O meu sofá deveria estar imaginando que eu ficaria ali com ele, imóvel, pra sempre, na frente da TV, esperando pelo novo capítulo do “Billions ”. Como um eterno “couch potato”. Tolinho! Ele não sabia, até porque nunca contei pra ele, para evitar ciúmes nesse namoro do tipo firme que temos tido. Nunca confessei que sempre houve outra tela na minha vida, de que eu nunca havia me esquecido.
Não contei a ele, mas ela é muito maior, mais vibrante, mais sonora e nunca me deixou adormecer. E mais ainda: não há brocas furando parede no apartamento ao lado e nem martelos pendurando quadros. É uma tela que me transporta para dentro da história, como na “Rosa púrpura do Cairo ” (Woody Allen).
Salvo um outro saquinho incômodo de pipoca, é tudo muito mais hipnótico.
Pois bem, estou de volta às salas escuras de cinema. Não contem a ele. Mesmo porque ainda vou me encaixar mais vezes no declive que eu lá deixei no sofá.
Preciso confessar, reencontrar a sala escura foi uma epifania, foi o ritual de um eterno recomeço. No saguão, ver gente ao redor, cheiro de manteiga, ouvir conversa dos outros, sentir que eu conheço alguém, mas a máscara não garante que seja a mesma pessoa, reencontrar o Elie e a Marisa. Isso tudo não tem preço.
Bem, a Ciça e eu nos sentamos na D5 e D6. Entramos na sala bem mais cedo acompanhando os outros se acomodando a uma distância segura. E porque entramos bem antes, o “leão da Metro ainda estava de bob”. (Ouvi isso há muito tempo, quando morei no Cambuci, indo ao cine Riviera em que eu madrugava meia hora antes do filme.)
Vai começar! Já sei, não posso fumar, não posso fotografar, gravar, celulares desligados. Alguns, nas duas fileiras mais à frente, ainda resistem no celular.
Nunca pensei que eu pudesse gostar tanto de ver trailers. Muitos. Algo que sempre achei um saco. Mas nesse retorno à sala escura, não me incomodei nem um pouco. Afinal, estica o tempo total em que vamos dentro da magia dessa tela. Trailer após trailer, vamos pré-classificando os filmes que entrarão em cartaz: esse eu vou querer ver, esse outro nem pensar, esse agora depende de ler uma resenha. Acabaram-se os trailers.
Trêmulo, eu sinto que o “Último Duelo ” vai começar. Começou.
Depois de duas horas e meia de mais um belo Ridley Scott, a sala ficou menos escura. Mas não saio antes de acompanhar todos os créditos. Todos mesmo. Até as dezenas de drivers que essas produções exigem. Já repararam quantos são?
Olhamos um para o outro e chegamos à mesma conclusão: o Netflix é o home office do cinema!
Hoje, nós todos estamos pensando em como equilibrar a vida profissional, entre a maravilhosa vivência “tribal” do escritório com todos juntos e o retiro digital solitário, quase monástico. Mas que nos salvou por dois anos.
O paralelo é o mesmo. Por um lado, Netflix e todos os streamings têm sido autênticos “kit covid” do nosso entretenimento e cultura dentro de casa. Lá fora, porém, as salas escuras, que nós sempre amamos, continuam nos chamando. Lá fora, “a vida bate” (Ferreira Gullar).
Texto por: Jaime Troiano
Publicado originalmente em O Globo
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