Por: Jaime Troiano
Publicado originalmente no Meio & Mensagem em 07/08/2023
O nosso olhar paulistano etnocêntrico sempre me incomodou, como indivíduo e como profissional. A riqueza econômica, financeira e cultural que São Paulo concentra e gera é o seu lado luz e inspiracional. Mas, oculta uma sombra, como não poderia deixar de ser, porque é sempre assim. É um olhar autocentrado, paroquial, com traços de uma soberba indisfarçável.
Depois de muitos anos convivendo com esses sintomas, tenho sido levado para outros lugares no Brasil, mais ou menos como nos convida a canção Vida de Viajante (Luiz Gonzaga e Hervê Cordovil). Fico indeciso: devo esperar que vocês continuem a ler estas linhas ou sugerir que ouçam Luiz Gonzaga, junto com seu filho Gonzaguinha, entoarem esse quase-hino nacional?
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Bem, se vocês ainda estiverem aí, compartilho o que tenho ouvido, visto e, principalmente, sentido nessas jornadas fora da cidade de São Paulo, muito longe da Faria Lima. Uma rica mistura de sentimentos pessoais, de ensinamentos profissionais e de uma recuperação de um orgulho autenticamente brasileiro.
Além de planilhas e imagens na internet, nada como ver ao vivo as maravilhosas zonas de expansão que brotam país afora. Exemplo? Depois de conviver por décadas comendo pão francês, feito com trigo argentino, descobri recentemente em Irati (PR) que também podemos fazer a mesma coisa com o nosso trigo. O que eles denominaram de trigo de origem, que não fica devendo nada a ninguém.
Ao contrário do nosso olhar paulistano ensimesmado, o que vejo em muitos lugares onde vou não é o ardente desejo de migrar para o Sul Maravilha, de que falava o Henfil, cartunista-pensador. Como se São Paulo abrigasse o Santo Graal. Mas, ao contrário disso, o que eu observo é o sincero orgulho local. Tive o privilégio de conhecer um grande empreendimento de fabricação de aço no Ceará e Pará. Mas também uma grande e qualificada rede educacional em Minas Gerais e que alcança mais de 800 escolas no Brasil, com seu sistema de ensino. E, mesmo não indo tão longe da Faria Lima, aprendi como uma marca de leite e derivados é tratada de forma quase maternal na Fazenda Colorado, em Araras. Há 100km de Araras, nasceu há 60 anos, em Amparo, uma empresa familiar que hoje responde por 20% dos produtos de limpeza doméstica. Confiram, eles devem estar aí em sua casa. Nada disso é coincidência, nada disso ocorre por acaso. E mais do que qualquer outra coisa, alguém tem dúvida do peso substancial que elas têm no PIB?
Aprendi que essas zonas de expansão da nossa economia recorrem hoje aos mesmos recursos técnicos e profissionais que temos por aqui. A distância foi neutralizada pela engenharia digital. Eu me lembro de uma época em que nós chegávamos a uma cidade distante de São Paulo e perguntávamos: Aqui vocês têm banda larga? Qual é o aeroporto mais perto? E outras perguntas idiotas de que, hoje, fico envergonhado ao me lembrar.
Zoom, Google Meet, Teams são muito bons. Ninguém nega. Porém, calçar os próprios sapatos do outro, pessoalmente, onde ele vive, trabalha e produz, onde a mágica acontece é uma experiência analógica que nem bilhões de bits substituem. Entender aquilo que somente com os cinco sentidos somos capazes de perceber, não tem preço.
Mais do que resultados diretamente profissionais que resultam dessa “vida de viajante”, tenho trazido na mala outra coisa, um doce souvenir. O reencontro com um padrão de relações humanas de afetividade mais plena que o nosso corre-corre sufocou. Convenhamos, o mero encontro no elevador, no farol de trânsito ou na estação de metrô não mata essa vontade armazenada de ir além do simples “tudo bem”? Quem se lembra da premonitória canção “Sinal fechado” do Paulinho da Viola (1974), entende melhor o que estou dizendo.
Elas, as marcas brasileiras, podem até ter se inspirado e aprendido com as globais. Ninguém nega. Anos trabalhando para a Unilever e J&J me mostrou isso. Mas chega um momento na vida das empresas locais em que é como se ouvíssemos um impulso de independência e de compromisso com o próprio caminho. Algo do tipo: “a Bahia já me deu régua e compasso, meu caminho pelo mundo eu mesmo traço” (Gilberto Gil).
A vida de viajante é um encontro com a cultura brasileira, em todas as suas múltiplas e poderosas matrizes e idiossincrasias. Um contraponto obrigatório para atenuar o que nossos projetos de marketing e branding fazem ao mimetizar as referências ocidentais, que herdamos das corporações globais que desembarcaram por aqui.
Nesta jornada, me convenci ainda de algo muito precioso, ao me deparar com muitas empresas familiares pelo meu caminho. O cuidado e o rigor com que elas administram seu negócio e suas marcas não são um espelho do que eu vejo nas corporações onde o poder se pulverizou e a volatilidade dos cargos é um vapt-vupt. Onde homens do negócio foram substituídos por homens de negócio, em busca de uma suposta profissionalização. A regra é clara: nas empresas que preservam os laços familiares na gestão do seu negócio, existe alguma coisa muito diferente. Algo que evoca um vínculo quase maternal. Uma paixão pelas raízes, um zelo pelo propósito que as guiam e de que não abrem mão. Mais do que uma estratégia de preservação da essência de sua marca, é uma conexão sanguínea com gerações que trouxeram ela até aqui hoje.
Resumindo: marketing, comunicação, branding só frutificam num solo regado por uma autêntica compreensão do que os consumidores pensam e, principalmente, sentem. Sem isso, estamos no estéril e arriscado terreno do etnocentrismo.
A vida de viajante é um saudável detox contra o etnocentrismo nos negócios. Usem e abusem!
E não se esqueçam, o carro voador virá de Taubaté (a 120 km da Av. Faria Lima).
Bem vindos, companheiros de estrada!
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